Expansão simbólica: Como Putin anexa não somente territórios mas também a história

por Volodymyr Yermolenko

Retrato de Ana de Kiev, copiado da coleção acadêmica de Bassen. Pintado entre o final do século XVIII e o começo do século XIX.

Em 29 de Março, durante uma conferência de imprensa com o presidente francês Emmanuel Macron, o líder russo Vladimir Putin disse que as relações entre Rússia e França possuem raízes históricas profundas, referindo-se a Ana de Kiev, uma rainha francesa, como a “Ana Russa”. Ele também disse que ela era a “filha do nosso grande príncipe Yaroslav O Sábio”. 
Nem Ana nem Yaroslav têm ligação direta alguma com a Rússia atual. Ambos têm relações diretas com Kiev, capital atual da Ucrânia. No século XI, Kiev era a capital de um estado medieval que deu a luz a no máximo três países do leste europeu contemporâneos, e que a Rússia tenta impor agora a sua “propriedade” histórica.

“Ana dos Eslovenos, a segunda esposa do rei Henrique I da França”. Retrato de Ana de Kiev situado nos murais do monastério de São Vicente em Senlis.

Ana de Kiev, rainha francesa que casou-se com o rei Henrique da França, nasceu e cresceu em Kiev no começo do século XI. Ela sem dúvida foi a filha do príncipe Yaroslav O Sábio, um dos principais líderes da Kiev medieval, um estado que compreendia partes da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia atuais. Kiev Rus teve a sua fase mais gloriosa na época do governo de Yaroslav, filho do príncipe Volodymyr, quem trouxe o cristianismo para o leste europeu. 
A referência de Putin à Ana e Yaroslav como “russos” é compatível com as suas primeiras tentativas de interpretar a história medieval do leste europeu numa visão exclusivamente russa. Isto claramente tinha implicações políticas, como anteriormente

Putin “justificou” a anexação da Criméia em 2014 com o batismo do príncipe Volodymyr em Chersonesos, a antiga cidade grega cujo as suas ruínas pode-se encontrar em Sevastopol na Criméia – Volodymyr foi um grande príncipe de Kiev, e o seu nome atual, Volodymer, é mais próximo ao ucraniano atual do quê o russo “Volodymyr”.

Essa referência ao grande batismo do príncipe como uma razão para o ato militar e político da anexação da Criméia em 2014, trouxe metáforas “sacras” e arcaicas para a política, e depois foi usada insistentemente pela Rússia e pelos separatistas pró Rússia para justificar a guerra no leste da Ucrânia.

Claro, a revisão da história foi usada como uma ferramenta política durante a época soviética, e as afirmações de Putin parecem re-usar práticas antigas. Mas de fato, elas fazem mais do que isso. A historiografia soviética interpretou Kiev Rus como o “berço” de três nações, Rússia, Ucrânia e Bielorrússia (sempre em ordem). Esta abordagem “multicultural” foi usada para mascarar a predominância dada à cultura e língua russas na União Soviética. Mas a isso, tentaram usá-la apenas para esconder e fingir que todas as três nações têm a sua parte na história medieval do leste europeu.

Kiev Rus durante 980-1054 cobria os territórios da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia.

A historiografia política atual de Putin vai mais além. A lenda do “berço” está desacreditada, e tudo parece não passar de uma narrativa russa. Se Ana de Kiev e Yaroslav são chamados de “russos”, isto implicitamente significa que tanto os ucranianos quanto os bielorussos não têm história política e nem herança de estado, portanto, nem mesmo são nações. Um ótimo pretexto para alguma futura “anexação” política. 
Sem dúvida anexação da história e apropriação simbólica do passado caminham lado à lado com a anexação da Criméia em 2014 e a contínua anexação de Donbas. A pretensa “propriedade” do passado sempre leva à aspirações de “propriedade” sobre outros territórios.

Nunca deu certo transformar a história em ferramenta política!

Os nazistas alegavam que as terras do leste europeu sempre “pertenceram à eles”  pois elas foram ocupadas por tribos “Arianas” e por colonizadores alemães há muito tempo atrás, e portanto deveriam ser libertadas dos Eslavos. Os facistas acreditavam que o Balcã, Grécia e o Adriático faziam parte da Itália, e por isso, os antigos territórios do antigo império romano deveriam retornar ao recém estado facista. Todas essas “referências históricas” foram usadas para justificar guerras que mataram milhões de pessoas.

Essas armadilhas e tragédias não se repetirão. O holocausto ainda está fresco na memória, lembra Timothy Snyder, e antigos clichês da segunda guerra tirados de histórias arcaicas como ferramenta política e justificativa para expansões militares, também deveriam estar frescos na memória. História não é um manual ideológico; ela nos lega várias narrações e memórias que temos que estudar e aprender sem manipulação. 
Sem dúvidas história é maior do quê as nossas interpretações, e, certamente, maior do que a obsessão dos governantes por expansão.

Artigo traduzido do site euromaidanpress.com https://euromaidanpress.com/2017/05/30/symbolic-expansion-how-putin-annexes-history-not-only-territories/

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